quarta-feira, 11 de maio de 2011

Teorema - O sexo sagrado do hospede dos patrões

É uma tarde de primavera avançada (ou, dada a natureza ambígua da história, do princípio do outono), uma tarde silenciosa. Os rumores da cidade apenas se afazem sentir ao longe.
Um sol oblíquo ilumina o jardim. A casa ficou isolada pelo silêncio; possivelmente saíram todos. No jardim permaneceu apenas o jovem hóspede. Está sentado numa espreguiçadeira ou numa poltrona de vime. Lê – com a cabeça na sombra e o corpo no sol.
Como veremos melhor, dentro em pouco – quando , ao seguirmos os olhares que o fixam, estivermos mais perto dos detalhes do seu corpo ao sol – está lendo apostilas de medicina ou engenharia.
O silêncio do jardim na paz profunda daquele sol imparticipado e consolador, com os primeiros gerânios que despontam (ou então com as primeiras folhas da romãzeira que caem), é interrompido por um rumo desagradável, monótono e excessivo: trata-se da pequena cortadeira mecânica, que assovia movendo-se para cima e para baixo sobre o gramado, recomeçando sempre do mesmo modo, sem interrupção, o seu barulho irregular. Quem empurra a cortadeira para frente e para trás é Emília.
Ela está num ângulo do jardim, no fundo de um prado liso, plano, de um verde profundo que quase cega, enquanto o jovem está num outro ângulo, junto da casa, sob uma pérgula de hera.
De vez em quando, o rumor obsessivo da cortadeira se interrompe: e Emília estaca e, por alguns instantes, permanece imóvel. Olha com insistência permanece imóvel. Olha com insistência em direção ao jovem com o estranho olhar de quem tivesse medo de encará-lo, mas ao mesmo tempo, e inconscientemente, não se envergonhasse dessa insistência. Ao contrário, o seu olhar se anuvia como se ela fosse a ofendida por aquela insistência.
Por quanto tempo ainda Emília continuará a andar para cima e para baixo com a cortadeira, a parar e olhar e recomeçar em seguida os mesmos movimentos, curvada e banhada de suor? E por quanto tempo, inconsciente não só da presença dela, mas até do fato de ignorá-la, o jovem continuará a ler suas apostilas? Por muito tempo, talvez por toda a manhã – ou seja, pela breve manhã dos dias das casas ricas, onde as dez são uma hora quase anterior à aurora. O sol vai subindo sempre mais no céu sem nuvens, até tornar-se abrasante – numa quente e árida paz.
Emília continua a empurrar, apressada e desajeitadamente, a cortadeira (o que não devia ser obrigação sua, mas do jardineiro. Há tempos tomou a si a incumbência do gramado, por uma espécie de rivalidade com o jardineiro, pois é filha de camponeses e veio diretamente do campo).
O jovem não se dá conta de que está sendo olhado, mergulhado completa e quase inocentemente no estudo – o que aos olhos de Emília, é um privilégio quase sagrado. Tanto mais que, agora no lugar das apostilas – talvez para descansar um pouco – está lendo um pequeno volume em edição econômica das poesias de Rimbaud. E essa leitura lhe prende a atenção ainda mais que a anterior.
A princípio, o olhar da criada, que se detém para contemplá-lo é rápido e fugaz, e só consegue ver o conjunto da figura dos hóspede, com a cabeça na sombra e o corpo ao sol.
Mas depois o olhar se aguça, e demora mais tempo sobre aquele objeto distante e sem reações: enquanto passa o antebraço sobre a fronte para enxugar o suor, explora, torva, os detalhes do corpo que se lhe oferece lá embaixo, tão inteiro e inconsciente.
Aos poucos, os seus gestos – que parecem obsessivos apenas por um certo condicionamento de pessoa simples – tornam-se obsessivos de modo explícito e quase ostensivo.
Ou seja, aquele ir e vir na humilde função de cortar a grama perde a naturalidade, deixa de ser fadiga de todo dia e se transforma quase na forma exterior de uma obscura intenção.
De fato, a insistência daquele olhar começa a ter qualquer coisa de suspeito e de insensato. A tal ponto que, finalmente, - como se nenhuma resistência fosse possível (mas o hóspede, mergulhado na leitura, ainda não se dá conta de nada – por outro lado, tão distante dela do ponto de vista social e espiritual), Emília – teatralmente – deixa a cortadeira no gramado e entra quase correndo em casa.
Passa pelo salão, pela cozinha, e entra no seu quartinho, estreito como uma cela, com os poucos luxos que os patrões lhe concedem e com as suas pobres coisas coloridas. E, começa a fazer gestos, que pareceriam normais, mas que, na realidade, pelo frenesi e pela inoportunidade com que são feitos, tornam-se completamente absurdos. Penteia-se. Tira os brincos. Reza (uma breve oração entre carola e estática).
Em seguida, como se despertasse, beija várias vezes um santinho com a imagem do Sagrado Coração e sai. Volta, sempre teatralmente, ao jardim e à cortadeira. E eis que recomeça aquele cerimonial obsessivo, com a cortadeira para e para baixo sobre a grama sempre com o olho nebuloso e inocente a explorar o corpo do jovem.
Pouco a pouco, a contemplação daquele corpo torna-se insustentável. E ela se revolta enfurecida contra a própria tentação. Torna a fugir, mas desta vez de maneira ainda mais espalhafatosa: ou seja, chorando e quase urrando, como se vítima de um ataque de histeria.
Esmaga a grama do jardim como um animal enfurecido e entra sem fôlego em casa.
Passa de novo pelo salão, precipita-se na cozinha e, com um gesto violento mas um pouco sonhador e idiota, destaca o tubo de gás, como se quisesse de fato suicidar-se.
O jovem, desta vez, por força das circunstâncias, foi obrigado a notar a sua presença e a interessar-se por ela. Não pode deixar de ter ouvido aquele choro e aqueles soluços histéricos, não pode deixar de ter percebido a fuga da mulher, que fazia tudo para ser notada por ele. Por isso, segue-a quase correndo, como ela, e alcança-a na cozinha, a tempo de vê-la fazer aqueles gestos de desatinado protesto. Socorre-a. Arranca-lhe das mãos o tubo de gás, procura animá-la, confortá-la, encontrar um meio para interromper aquelas atitudes irrefletidas de uma dor que não reconhece mais nada.
Arrasta-a até o seu pequeno quarto e estende-a sobre o leito, enquanto Emília começa a agitar-se e a respirar com menos dificuldade e a mostrar o desejo de ser acalmada e consolada.
Nisso tudo – ao levantá-la, ao falar-lhe, ao deitá-la naquele triste palheiro – o jovem hóspede demonstra um ar estranhamente protetor, quase maternal; como a mãe que já conhecesse os caprichos do filho e os previsse, numa espécie de amorosa consciência.
Há também uma sutil ponta de ironia naquela sua maneira de agir em relação a ela, naquela sua paciência sem deslumbramento. Era como se a loucura da mulher, a sua fraqueza, o repentino desmoronamento de qualquer resistência e de qualquer dignidade – o desmoronamento de todo o mundo dos deveres – suscitassem nele nada mais do que uma espécie de amorosa compaixão – isso mesmo: de delicada atenção materna.
Esta sua maneira de agir e esta expressão dos olhos que parecem dizer: “Não é nada de grave!” se acentuam ainda mais quando Emília (seduzida por suas ternuras e por suas carícias – e cegamente obediente ao seu instinto, já agora sem nada que o contenha) quase mecanicamente, numa espécie de inspiração mais mística do que histérica, levanta a saia até acima dos joelhos.
Tendo perdido a consciência e a voz, e já agora o pudor, essa parece a única maneira que ela possui de oferecer-se, de oferecer alguma coisa, como uma suplicante, ao rapaz. E justamente por ser enorme, tudo isso tem uma pureza e uma humildade de animal.
O rapaz, então – sempre com um ar maternal protetor e docemente irônico – puxa a saia para baixo, como para defender aquele pudor que ela esqueceu, e que, ao contrário, é tudo para ela. Em seguida, lhe faz uma carícia no rosto.
Emília chora de vergonha: embora não se trate daquela espécie particular de choro que é o desabafo que chega, infantil, quando a crise já está se aplacando, consolada.
Com os dedos, ele lhe enxuga as lágrimas.
Ela beija aqueles dedos – que a acariciam – com respeito e a humildade de uma cadela ou de uma filha que beija as mãos do pai.
Nada impede que eles se amem: o jovem se estende sobre o corpo da mulher, respondendo ao seu desejo de ser possuída por ele.


Pier Paolo Pasolini

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