quarta-feira, 4 de maio de 2011

Épica e didática no cinema de Glauber


Ruy Gardnier


Um discurso muito difundido afirma que os filmes de Glauber Rocha já foram vistos, revistos, analisados, repisados à exaustão. Mas esse discurso só faz algum sentido se Glauber tivesse parado de filmar nos anos 1960 e depois disso não tivesse feito absolutamente nada. Para uma boa parte da tradição, seu cinema é reduzido apenas às suas três obras mais conhecidas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, lançados no período entre 1964 e 1969. E uma ironia histórica faz com que, de toda sua relativamente extensa produção dos anos 1970, seu único filme bem conhecido seja um curta-metragem (formato historicamente pouco prestigiado) que teve sua exibição pública proibida, Di Cavalcanti (1976).

Seu único longa-metragem dos anos 1970 efetivamente lançado no Brasil foi Cabezas Cortadas, um filme de 1970 que só entrou em cartaz no país nove anos depois de sua première internacional no Festival de San Sebastián. O resto permanece rigorosamente inédito no circuito brasileiro, apenas exibido em retrospectivas a partir dos anos 1980: O Leão de Sete Cabeças, Câncer (filmado em 1968, mas apenas finalizado em 1972), História do Brasil (feito em colaboração com Marcos Medeiros) e Claro. Naturalmente, esse desconhecimento patente de uma parte significativa da obra só fez obscurecer a trajetória de Glauber Rocha como artista e como intelectual, facilitando os mal-entendidos, as acusações simplórias e a recusa sistemática das ideias políticas e estéticas que ele exprimia em estratégicas intervenções na mídia (entrevistas escandalosas e as feéricas participações no programa Abertura), em colunas de jornal e em seus filmes.

O lançamento de O Leão de Sete Cabeças é o primeiro gesto significativo para um primeiro olhar coletivo diante desse verdadeiro enigma que é “Glauber anos 70”. Nesse percurso, não está em jogo só a passagem da “estética da fome” para a “estética do sonho”, mas também a aposta numa relação mais ativa e direta entre cinema e sociedade, em que a arte ruminaria o consciente e o inconsciente dos povos, misturando desejo e política, liberação nas escalas micro (os costumes) e macro (o imperialismo, o poder), apostando cada vez menos em narrativas bem definidas e cada vez mais no poder evocativo dos símbolos e arquétipos trabalhados nas obras.

Essa progressão já era paulatinamente trabalhada nos filmes dos anos 1960: Terra em Transe era um turbilhão barroco e desagradou a todos que esperavam um segundo Deus e o Diabo… (o tradicionalista Antonio Moniz Vianna, entusiasta de Deus e o Diabo…, chamou Terra em Transe de “obra-prima da indisciplina narrativa”, lamentando a “confusão” de sua intriga), ao passo que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro tratava o imaginário do cangaço como uma ritualística de cores, danças e arquétipos da cultura popular (em especial a figura de São Jorge e seu oponente, o dragão).

O Leão de Sete Cabeças, assim como Cabezas Cortadas, surge em 1969. Nesse ano, Glauber é possivelmente a figura mais festejada do cinema de autor, e seus filmes são vistos como a mais impactante força de resistência artística do Terceiro Mundo (a Guerra do Vietnã transformando o imperialismo na grande discussão política da época). Os acertos com os produtores para realizar esses dois filmes aconteceram no Festival de Cannes de 1969, em que seu Antonio das Mortes (nome internacional de O Dragão da Maldade…) fazia sensação, ganhava contratos de distribuição para dezenas de países e ainda viria a abocanhar a Palma de Ouro de Melhor Direção. É tanta a vontade de produzir um filme de Glauber naquele momento que os produtores fecham acordos sem mesmo requisitar um roteiro. É a crista da onda. Mas o sucesso também produz um desconforto. Nesse momento, a autocrítica do cineasta começa a apitar, e surge a sensação de que o sucesso ocorre mais pelo aspecto exótico e sensual da obra, tornando-a excessivamente palatável e desvirtuando aquilo que o artista julga mais importante nela.

Radicalização estética
Ainda no fim de 1969, Glauber filma O Leão de Sete Cabeças, na República do Congo (ou Congo-Brazzaville, para não confundir com a República Democrática do Congo, ou Congo-Kinshasa) e, no começo de 1970, roda Cabezas Cortadas em duas cidades próximas a Barcelona. Os dois filmes carregam profundamente a marca do sucesso de Cannes: vê-se claramente um cineasta seguro de si, com total desprendimento para improvisar à vontade e aproveitar o caráter fragmentário da narrativa para explorar o poder icônico de seus personagens (ligado estreitamente ao papel de poder que cada um deles representa).

Mas não é só isso. Há também uma nítida preocupação em recusar aquilo que pode ser visto como floreio, produzindo uma estética frontal, despida de ornamentos, que potencializa ao contrário a aridez e eventualmente o choque. Glauber, aliás, não é o único que passa por esse processo: Godard abandona o cinema ficcional com Weekend à Francesa, em 1967, e monta o Grupo Dziga Vertov, enquanto Pasolini cria parábolas arquetípicas e áridas com Teorema e, sobretudo, Pocilga.

Nos três casos, há uma clara recusa em afagar a sensibilidade do espectador, visando efetivamente friccioná-la, provocá-la ou mesmo confrontá-la. É um movimento conjunto do cinema autoral do fim dos anos 1960, em que alguns cineastas radicalizam progressivamente suas estéticas e reduzem os elos que unem seus filmes aos imperativos da narrativa clássica (verossimilhança, clareza, duração submetida à ação).

Glauber, porém, articula essa radicalização de uma maneira absolutamente pessoal e que diz respeito à compreensão que ele faz do espetáculo “épico-didático” que herda de Bertolt Brecht. A intenção, como em Brecht, é dramatizar situações sociais e políticas, recusando o naturalismo psicológico e utilizando a forma cinematográfica para criar perturbações na fruição do público (ao contrário do realismo socialista, apoiado no ilusionismo da representação e ancorado na ideia de reproduzir a realidade, transmitindo mensagens progressistas).

A partir de O Leão de Sete Cabeças e de Cabezas Cortadas, no entanto, o épico-didático de Glauber largará o mundo “consciente” e passará a encenar um teatro do inconsciente, como se as condições de exploração e de dominação não fossem apenas dados factuais, mas acima de tudo arquétipos encravados no fundo do subconsciente dos povos do Terceiro Mundo e dos espoliados em geral. Se a transformação é só uma questão de tomada de consciência, o realismo resolve. Se, no entanto, há camadas mais profundas, o realismo é inócuo e só uma iconografia delirante pode dar conta dessa outra “realidade”. À medida que as narrativas bem construídas dos filmes dos anos 1960 vão dando lugar aos quase-esboços dos anos 1970, torna-se progressivamente claro que a estética de Glauber é baseada não na explicação do mundo, mas na purgação – revolucionária, dialética – de uma condição política e existencial. Um incêndio simbólico para fazer a libertação brotar das cinzas do ícone deposto.

O Leão de Sete Cabeças abre uma fase no cinema de Glauber Rocha em que a forma cinematográfica é trabalhada mais radicalmente no sentido de descondicionar o espectador dos nexos narrativos e da mediação da “voz do autor”, utilizando a frontalidade das situações – frequentemente gratuitas e exageradas, fascinantes pelo excesso visual (aí o épico) – para liberar nossos olhares (aí o didático) e nos impelir a indagar a questão revolucionária, o problema fundamental: como olhar para isso?

Ruy Gardnier é crítico de cinema brasileiro e colaborador da revista eletrônica Contracampo


Revista Cult

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