quarta-feira, 22 de junho de 2011

Libertadores de América

Cheiro de naftalina na cidade,
aglomerações espontâneas pelo caminho,
Certa ansiedade,
fumaça, bombas, fogos e traquinho!

Camisa desbotada,
Ídolo demagogo,
asilo da meninada,
"Calma, é só um jogo!"

Com a vitória final,
Cinquenta anos se passaram,
Mas Santander não é Libertador!

Entre a sombra do ditador,
o nome de um banco,
um time do passado, vestido de branco!

Sem força de ninguém,
Levado por nenhum,
Eterno sete a um!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

DZIGA VERTOV - 1924

dentro da noite veloz

"(...)
Ernesto Che Guevara
teu fim está perto
não basta estar certo
pra vencer a batalha

Ernesto Che Guevara
entrega-te à prisão
não basta ter razão
pra não morrer à bala

Ernesto Che Guevara
não estejas iludido
a bala entra em teu corpo
como em qualquer bandido

Ernesto Che Guevara
porque lutas ainda?
A batalha está finda
antes que o dia acabe

Ernesto Che Guevara
é chegada a tua hora
e o povo ignora
se por ele lutavas
(...)"

Ferreira Gullar

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mídia e poder na sociedade do espetáculo


Um dos principais equívocos sobre a sociedade contemporânea é o argumento de que o conjunto dos meios de comunicação, a mídia, é a instituição social mais poderosa. Fazem parte desse argumento expressões problemáticas como “sociedade midiatizada”, “cultura da mídia” etc.

Antes de mais nada, é preciso distinguir quais meios de comunicação possuem poder e que tipo de poder exercem. Não há dúvida de que conglomerados empresariais como as Organizações Globo, no contexto brasileiro, e a News Corporation, de Rudolph Murdoch, no contexto mundial, são exemplos de instituições poderosas, que movimentam enorme quantidade de capital, influenciam comportamentos individuais e coletivos e agem politicamente, defendendo seus próprios interesses e os interesses da sociedade capitalista de modo geral. De forma alguma essas empresas podem ser consideradas como fazendo parte de uma mesma instituição social, com todos aqueles que são produtores de mensagens e utilizam algum tipo de recurso tecnológico.

O conceito de “indústria cultural”, ainda que tenha sido criado por Adorno e Horkheimer na primeira metade do século passado, explica muito melhor a atuação dos meios de comunicação do que o termo “mídia”, pois destaca a dimensão econômica da comunicação. Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento, publicado em 1947, já indicavam que os conglomerados empresariais que atuam na comunicação são fundamentais para a existência da sociedade capitalista, mas que seu poder depende do poder dos conglomerados empresariais de modo geral.

Sociedade do espetáculo e capitalismo
A própria expressão “sociedade do espetáculo” pode dar margem a interpretações equivocadas, se for entendida como o poder que as imagens exercem na sociedade contemporânea. É certo que Guy Debord, o criador do conceito de “sociedade do espetáculo”, definiu o espetáculo como o conjunto das relações sociais mediadas pelas imagens.

Mas ele também deixou claro que é impossível a separação entre essas relações sociais e as relações de produção e consumo de mercadorias. A sociedade do espetáculo corresponde a uma fase específica da sociedade capitalista, quando há uma interdependência entre o processo de acúmulo de capital e o processo de acúmulo de imagens. O papel desempenhado pelo marketing, sua onipresença, ilustra perfeitamente bem o que Debord quis dizer: das relações interpessoais à política, passando pelas manifestações religiosas, tudo está mercantilizado e envolvido por imagens.Mas, se a sociedade do espetáculo só pode ser compreendida dentro do contexto da sociedade capitalista, isso não quer dizer que só nessa forma de vida social ocorre a produção de espetáculos.

A produção de imagens, a valorização da dimensão visual da comunicação, como instrumento de exercício do poder, de dominação social, existe, conforme argumenta Debord no livro Sociedade do Espetáculo, publicado em 1967, em todas as sociedades onde há classes sociais, isto é, onde a desigualdade social está presente graças à divisão social do trabalho, principalmente a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual.

Na sociedade feudal, por exemplo, o poder da nobreza sobre os servos estava vinculado à aparência de superioridade construída pelos nobres, mediante o uso de peças sofisticadas de vestuário, a construção de moradias com estilos arquitetônicos imponentes, a organização de festas suntuosas etc. O que permite a caracterização do capitalismo como a sociedade do espetáculo é o caráter cotidiano da produção de espetáculos, a quantidade incalculável de espetáculos produzidos e seu vínculo com a produção e o consumo de mercadorias feitas em larga escala.

O poder espetacular
Na sociedade capitalista, o poder espetacular está disseminado por toda a vida social, na qual há simultaneamente produção e consumo de mercadorias e de imagens, constituindo-se na forma difusa desse poder, conforme definição dada por Debord em 1967, ou ocorre vinculado à ação do Estado, de forma concentrada, com a produção de imagens para justificar o poder exercido por seus dirigentes.

Assim como o conceito de “indústria cultural”, o conceito de “sociedade do espetáculo” faz parte de uma postura crítica com relação à sociedade capitalista. Não são conceitos pensados de maneira puramente acadêmica, como capazes apenas de descrever as características sociais, mas fazem parte de uma construção teórica que procura apontar aquilo que se constitui em entraves para a emancipação humana.

Na década de 1960, Guy Debord e os demais militantes políticos e culturais aglutinados em torno da Internacional Situacionista destacaram-se pela capacidade de influenciar um dos mais importantes movimentos sociais do século 20, que contou com a participação de milhões de estudantes e operários e entrou para a história como o movimento de maio de 1968. Os situacionistas defendiam uma ação contra a alienação presente na vida cotidiana, postulando que os estudantes e os trabalhadores deveriam retomar o controle sobre suas próprias vidas, ocupando as escolas e fábricas e passando a exercer, com base em decisões tomadas coletivamente em assembleias, o poder nessas instituições. As ocupações aconteceram, mas fracassaram como estratégia para revolucionar a sociedade capitalista.

Em 1988, Debord publica os Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, reconhecendo que, em vez de a sociedade do espetáculo ser destruída, ela se fortaleceu no período histórico posterior às lutas sociais de 1968. Nesse texto, ele afirma que a produção de espetáculos tomou conta de toda a vida social; o poder espetacular manifesta-se agora de forma integrada, já que desapareceram os movimentos sociais de oposição, que se assimilaram à sociedade capitalista e não defendem mais sua superação.

A análise feita por Debord em 1988 a respeito do poder espetacular corresponde ao momento do triunfo do neoliberalismo em escala mundial. O neoliberalismo, com a defesa da liberdade de atuação para os grandes conglomerados empresariais, significou um retrocesso nas conquistas sociais dos trabalhadores, causando o avanço do desemprego, da precarização das condições de trabalho, e o enfraquecimento dos sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda.

Com o neoliberalismo, o poder dos conglomerados comunicacionais fortalece-se e a indústria cultural, articulada mundialmente, transforma-se no porta-voz ideológico do capitalismo, desqualificando qualquer visão contrária a ele como ultrapassada, promovendo assim o pensamento único, em relação ao qual não há alternativa.

O contexto contemporâneo
A atual crise econômica, que se manifesta intensamente nos Estados Unidos e na Europa e faz com que somas gigantescas, na casa dos trilhões de dólares, sejam direcionadas pelos governos para “salvar” instituições financeiras envolvidas numa verdadeira orgia especulativa, está provocando um abalo significativo no neoliberalismo e no pensamento único.

Na América Latina, esse abalo teria começado antes, com a ascensão ao poder de líderes políticos considerados de esquerda. No entanto, não é muito fácil avaliar se essa ascensão significou efetivamente um abalo no neoliberalismo, já que, na prática, são governos com atitudes bastante distintas. No Brasil, por exemplo, em que pese a melhoria das condições de vida da maioria da população com a diminuição das desigualdades sociais, houve, em linhas gerais, uma manutenção da política econômica neoliberal. Além disso, nas campanhas eleitorais e durante os mandatos presidenciais de Lula ocorreu uma farta utilização das técnicas de marketing para a produção de imagens espetaculares capazes de garantir sua eleição, reeleição e altíssimos índices de popularidade.

Mas, de qualquer maneira, a realidade contemporânea possui elementos suficientes para que uma reflexão sobre a possibilidade de um retorno da crítica teórica e prática da sociedade capitalista do espetáculo se torne indispensável. No contexto brasileiro, a vitória da candidata Dilma Rousseff significou a retomada do debate sobre um eventual declínio da capacidade de os grandes conglomerados comunicacionais influenciarem a opinião pública.

Esse debate já havia acontecido à época da reeleição de Lula, quando a atuação desses conglomerados, com a divulgação intensa de “escândalos” envolvendo figuras importantes do PT, contribuiu de forma decisiva para a existência do segundo turno eleitoral, que, no entanto, foi vencido por Lula. Na campanha de 2010, a atuação dos grandes grupos comunicacionais, em especial a mídia impressa, foi ainda mais forte contra a candidata do PT, mas o resultado final foi o mesmo: houve um segundo turno vencido por Dilma Rousseff.

Um aspecto importante, que precisa ser levado em consideração, é que é a mídia eletrônica, em especial a Rede Globo de Televisão, a principal mídia capaz de influenciar a opinião pública em escala nacional, atingindo todas as classes sociais. Ainda que a cobertura eleitoral feita pela Globo possa ser considerada favorável à candidatura Serra, basta lembrar o destaque dado à “agressão” sofrida por Serra no Rio de Janeiro: em nenhum momento ela atingiu o caráter de uma ação sistemática de desqualificação da candidatura Dilma, como a cobertura feita pela Veja.

Também precisa ser levado em consideração que, em São Paulo, o PSDB governa o estado há mais de uma década, com total apoio da chamada grande mídia. Além disso, José Serra foi o candidato à Presidência mais votado no estado, evidenciando o peso das posturas políticas mais conservadoras, amplamente hegemônicas no jornalismo dos grandes conglomerados comunicacionais.

Embora o governo Lula não possa ser considerado um governo que rompeu com o neoliberalismo, só o fato de ele ter sido um líder operário eleito pelo partido que se afirma como defensor dos trabalhadores e com um passado político vinculado à defesa de posições de esquerda já foi suficiente para gerar uma forte onda conservadora na grande mídia, especialmente na mídia impressa. Se essa onda conservadora não foi capaz de superar a imagem positiva de Lula trazida principalmente pela retomada do crescimento econômico acontecida em seu governo, ela não pode ser deixada de lado e se fez presente com força na campanha eleitoral de 2010, principalmente em torno da questão do aborto.

Como o passado político de Dilma Rousseff é ainda mais problemático do ponto de vista do conservadorismo político, visto que ela se envolveu na luta armada contra a ditadura militar, é provável que a reação conservadora seja ainda mais forte do que foi contra o governo Lula. Caso isso aconteça, é possível que o governo Dilma avance no sentido de uma ruptura com o neoliberalismo, ou pelo menos na direção de uma postura ideológica de esquerda mais definida, diminuindo o uso do marketing político e da produção de espetáculos políticos, inclusive porque, se Lula dificilmente sairá do cenário político, ele não estará mais ocupando a posição central.

Cláudio Novaes Pinto Coelho é professor da Faculdade Cásper Líbero

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Triste Bahia

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

Gregório de Matos

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Noam Chomsky: “Minha reação ante a morte de Osama"

Poderiamos perguntar a nós mesmo como reagiríamos se um comando iraquiano pousasse de surpresa na mansão de George W. Bush, o assassinasse e, em seguida, atirasse seu corpo no Oceano Atlântico.

Por Noam Chomsky, no Guernica Magazine

Fica cada vez fica mais evidente que a operação foi um assassinato planejado, violando de múltiplas maneiras normas elementares de direito internacional. Aparentemente não fizeram nenhuma tentativa de aprisionar a vítima desarmada, o que presumivelmente 80 soldados poderiam ter feito sem trabalho, já que virtualmente não enfrentaram nenhuma oposição, exceto, como afirmara, a da esposa de Osama bin Laden, que se atirou contra eles.

Em sociedades que professam um certo respeito pela lei, os suspeitos são detidos e passam por um processo justo. Sublinho a palavra "suspeitos". Em abril de 2002, o chefe do FBI, Robert Mueller, informou à mídia que, depois da investigação mais intensiva da história, o FBI só podia dizer que "acreditava" que a conspiração foi tramada no Afeganistão, embora tenha sido implementada nos Emirados Árabes Unidos e na Alemanha.

O que apenas acreditavam em abril de 2002, obviamente sabiam 8 meses antes, quando Washington desdenhou ofertas tentadoras dos talibãs (não sabemos a que ponto eram sérias, pois foram descartadas instantâneamente) de extraditar a Bin Laden se lhes mostrassem alguma prova, que, como logo soubemos, Washington não tinha. Por tanto, Obama simplesmente mentiu quando disse sua declaração da Casa Branca, que "rapidamente soubemos que os ataques de 11 de setembro de 2001 foram realizados pela al-Qaida.

Desde então não revelaram mais nada sério. Falaram muito da "confissão" de Bin Laden, mas isso soa mais como se eu confessasse que venci a Maratona de Bosto. Bin Laden alardeou um feito que considerava uma grande vitória.

Também há muita discussão sobre a cólera de Washington contra o Paquistão, por este não ter entregado Bin Laden, embora seguramente elementos das forças militares e de segurança estavam informados de sua presença em Abbottabad. Fala-se menos da cólera do Paquistão por ter tido seu território invadido pelos Estados Unidos para realizarem um assassinato político.

O fervor antiestadunidense já é muito forte no Paquistão, e esse evento certamente o exarcebaria. A decisão de lançar o corpo ao mar já provoca, previsivelmente, cólera e ceticismo em grande parte do mundo muçulmano.

Poderiamos perguntar como reagiriamos se uns comandos iraquianos aterrizassem na mansão de George W. Bush, o assassinassem e lançassem seu corpo no Atlântico. Sem deixar dúvidas, seus crimes excederam em muito os que Bin Laden cometeu, e não é um "suspeito", mas sim, indiscutivelmente, o sujeito que "tomou as decisões", quem deu as ordens de cometer o "supremo crime internacional, que difere só de outros crimes de guerra porque contém em si o mal acumulado do conjunto" (citando o Tribunal de Nuremberg), pelo qual foram enforcados os criminosos nazistas: os centenas de milhares de mortos, milhões de refugiados, destruição de grande parte do país, o encarniçado conflito sectário que agora se propagou pelo resto da região.

Há também mais coisas a dizer sobre Bosch (Orlando Bosch, o terrorista que explodiu um avião cubano), que acaba de morrer pacificamente na Flórica, e sobre a "doutrina Bush", de que as sociedades que recebem e protegem terroristas são tão culpadas como os próprios terroristas, e que é preciso tratá-las da mesma maneira. Parece que ninguém se deu conta de que Bush estava, ao pronunciar aquilo, conclamando a invadirem, destruirem os Estados Unidos e assassinarem seu presidente criminoso.

O mesmo passa com o nome: Operação Gerônimo. A mentalidade imperial está tão arraigada, em toda a sociedade ocidental, que parece que ninguém percebe que estão glorificando Bin Laden, ao identificá-lo com a valorosa resistência frente aos invasores genocidas.

É como batizar nossas armas assassinas com os nomes das vítimas de nossos crimes: Apache, Tomahawk (nomes de tribos indígenas dos Estados Unidos). Seria algo parecido à Luftwaffe dar nomes a seus caças como "Judeu", ou "Cigano".

Há muito mais a dizer, mas os fatos mais óbvios e elementares, inclusive, deveriam nos dar mais o que pensar.

Noam Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofía del MIT. É autor de numerosas obras políticas. Seus últimos livros são uma nova edição de "Power and Terror", "The Essential Chomsky" (editado por Anthony Arnove), uma coletânea de seus trabalhos sobre política e linguagem, desde os anos 1950 até hoje, "Gaza in Crisis", com Ilan Pappé, e "Hopes and Prospects", também disponível em áudio.

Fonte: Cubadebate

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Teorema - O sexo sagrado do hospede dos patrões

É uma tarde de primavera avançada (ou, dada a natureza ambígua da história, do princípio do outono), uma tarde silenciosa. Os rumores da cidade apenas se afazem sentir ao longe.
Um sol oblíquo ilumina o jardim. A casa ficou isolada pelo silêncio; possivelmente saíram todos. No jardim permaneceu apenas o jovem hóspede. Está sentado numa espreguiçadeira ou numa poltrona de vime. Lê – com a cabeça na sombra e o corpo no sol.
Como veremos melhor, dentro em pouco – quando , ao seguirmos os olhares que o fixam, estivermos mais perto dos detalhes do seu corpo ao sol – está lendo apostilas de medicina ou engenharia.
O silêncio do jardim na paz profunda daquele sol imparticipado e consolador, com os primeiros gerânios que despontam (ou então com as primeiras folhas da romãzeira que caem), é interrompido por um rumo desagradável, monótono e excessivo: trata-se da pequena cortadeira mecânica, que assovia movendo-se para cima e para baixo sobre o gramado, recomeçando sempre do mesmo modo, sem interrupção, o seu barulho irregular. Quem empurra a cortadeira para frente e para trás é Emília.
Ela está num ângulo do jardim, no fundo de um prado liso, plano, de um verde profundo que quase cega, enquanto o jovem está num outro ângulo, junto da casa, sob uma pérgula de hera.
De vez em quando, o rumor obsessivo da cortadeira se interrompe: e Emília estaca e, por alguns instantes, permanece imóvel. Olha com insistência permanece imóvel. Olha com insistência em direção ao jovem com o estranho olhar de quem tivesse medo de encará-lo, mas ao mesmo tempo, e inconscientemente, não se envergonhasse dessa insistência. Ao contrário, o seu olhar se anuvia como se ela fosse a ofendida por aquela insistência.
Por quanto tempo ainda Emília continuará a andar para cima e para baixo com a cortadeira, a parar e olhar e recomeçar em seguida os mesmos movimentos, curvada e banhada de suor? E por quanto tempo, inconsciente não só da presença dela, mas até do fato de ignorá-la, o jovem continuará a ler suas apostilas? Por muito tempo, talvez por toda a manhã – ou seja, pela breve manhã dos dias das casas ricas, onde as dez são uma hora quase anterior à aurora. O sol vai subindo sempre mais no céu sem nuvens, até tornar-se abrasante – numa quente e árida paz.
Emília continua a empurrar, apressada e desajeitadamente, a cortadeira (o que não devia ser obrigação sua, mas do jardineiro. Há tempos tomou a si a incumbência do gramado, por uma espécie de rivalidade com o jardineiro, pois é filha de camponeses e veio diretamente do campo).
O jovem não se dá conta de que está sendo olhado, mergulhado completa e quase inocentemente no estudo – o que aos olhos de Emília, é um privilégio quase sagrado. Tanto mais que, agora no lugar das apostilas – talvez para descansar um pouco – está lendo um pequeno volume em edição econômica das poesias de Rimbaud. E essa leitura lhe prende a atenção ainda mais que a anterior.
A princípio, o olhar da criada, que se detém para contemplá-lo é rápido e fugaz, e só consegue ver o conjunto da figura dos hóspede, com a cabeça na sombra e o corpo ao sol.
Mas depois o olhar se aguça, e demora mais tempo sobre aquele objeto distante e sem reações: enquanto passa o antebraço sobre a fronte para enxugar o suor, explora, torva, os detalhes do corpo que se lhe oferece lá embaixo, tão inteiro e inconsciente.
Aos poucos, os seus gestos – que parecem obsessivos apenas por um certo condicionamento de pessoa simples – tornam-se obsessivos de modo explícito e quase ostensivo.
Ou seja, aquele ir e vir na humilde função de cortar a grama perde a naturalidade, deixa de ser fadiga de todo dia e se transforma quase na forma exterior de uma obscura intenção.
De fato, a insistência daquele olhar começa a ter qualquer coisa de suspeito e de insensato. A tal ponto que, finalmente, - como se nenhuma resistência fosse possível (mas o hóspede, mergulhado na leitura, ainda não se dá conta de nada – por outro lado, tão distante dela do ponto de vista social e espiritual), Emília – teatralmente – deixa a cortadeira no gramado e entra quase correndo em casa.
Passa pelo salão, pela cozinha, e entra no seu quartinho, estreito como uma cela, com os poucos luxos que os patrões lhe concedem e com as suas pobres coisas coloridas. E, começa a fazer gestos, que pareceriam normais, mas que, na realidade, pelo frenesi e pela inoportunidade com que são feitos, tornam-se completamente absurdos. Penteia-se. Tira os brincos. Reza (uma breve oração entre carola e estática).
Em seguida, como se despertasse, beija várias vezes um santinho com a imagem do Sagrado Coração e sai. Volta, sempre teatralmente, ao jardim e à cortadeira. E eis que recomeça aquele cerimonial obsessivo, com a cortadeira para e para baixo sobre a grama sempre com o olho nebuloso e inocente a explorar o corpo do jovem.
Pouco a pouco, a contemplação daquele corpo torna-se insustentável. E ela se revolta enfurecida contra a própria tentação. Torna a fugir, mas desta vez de maneira ainda mais espalhafatosa: ou seja, chorando e quase urrando, como se vítima de um ataque de histeria.
Esmaga a grama do jardim como um animal enfurecido e entra sem fôlego em casa.
Passa de novo pelo salão, precipita-se na cozinha e, com um gesto violento mas um pouco sonhador e idiota, destaca o tubo de gás, como se quisesse de fato suicidar-se.
O jovem, desta vez, por força das circunstâncias, foi obrigado a notar a sua presença e a interessar-se por ela. Não pode deixar de ter ouvido aquele choro e aqueles soluços histéricos, não pode deixar de ter percebido a fuga da mulher, que fazia tudo para ser notada por ele. Por isso, segue-a quase correndo, como ela, e alcança-a na cozinha, a tempo de vê-la fazer aqueles gestos de desatinado protesto. Socorre-a. Arranca-lhe das mãos o tubo de gás, procura animá-la, confortá-la, encontrar um meio para interromper aquelas atitudes irrefletidas de uma dor que não reconhece mais nada.
Arrasta-a até o seu pequeno quarto e estende-a sobre o leito, enquanto Emília começa a agitar-se e a respirar com menos dificuldade e a mostrar o desejo de ser acalmada e consolada.
Nisso tudo – ao levantá-la, ao falar-lhe, ao deitá-la naquele triste palheiro – o jovem hóspede demonstra um ar estranhamente protetor, quase maternal; como a mãe que já conhecesse os caprichos do filho e os previsse, numa espécie de amorosa consciência.
Há também uma sutil ponta de ironia naquela sua maneira de agir em relação a ela, naquela sua paciência sem deslumbramento. Era como se a loucura da mulher, a sua fraqueza, o repentino desmoronamento de qualquer resistência e de qualquer dignidade – o desmoronamento de todo o mundo dos deveres – suscitassem nele nada mais do que uma espécie de amorosa compaixão – isso mesmo: de delicada atenção materna.
Esta sua maneira de agir e esta expressão dos olhos que parecem dizer: “Não é nada de grave!” se acentuam ainda mais quando Emília (seduzida por suas ternuras e por suas carícias – e cegamente obediente ao seu instinto, já agora sem nada que o contenha) quase mecanicamente, numa espécie de inspiração mais mística do que histérica, levanta a saia até acima dos joelhos.
Tendo perdido a consciência e a voz, e já agora o pudor, essa parece a única maneira que ela possui de oferecer-se, de oferecer alguma coisa, como uma suplicante, ao rapaz. E justamente por ser enorme, tudo isso tem uma pureza e uma humildade de animal.
O rapaz, então – sempre com um ar maternal protetor e docemente irônico – puxa a saia para baixo, como para defender aquele pudor que ela esqueceu, e que, ao contrário, é tudo para ela. Em seguida, lhe faz uma carícia no rosto.
Emília chora de vergonha: embora não se trate daquela espécie particular de choro que é o desabafo que chega, infantil, quando a crise já está se aplacando, consolada.
Com os dedos, ele lhe enxuga as lágrimas.
Ela beija aqueles dedos – que a acariciam – com respeito e a humildade de uma cadela ou de uma filha que beija as mãos do pai.
Nada impede que eles se amem: o jovem se estende sobre o corpo da mulher, respondendo ao seu desejo de ser possuída por ele.


Pier Paolo Pasolini

terça-feira, 10 de maio de 2011

Ana de Amsterdam

Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, das trocas, das pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana, da cama
Da cana, fulana, sacana
Sou Ana de Amsterdam

Eu cruzei um oceano
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar

Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do Oriente, Ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam

Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar

Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, das vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam...

Chico Buarque

segunda-feira, 9 de maio de 2011

police on my back

Well I'm running police on my back
I've been hiding police on my back
There was a shooting police on my back
And the victim well he wont come back

What have I done?

I been running monday tuesday wednesday
Thursday friday saturday sunday runnin
monday tuesday wednesday thursday friday
Saturday sunday

Yes, I'm running down the railway track
Could you help me? Police on my back
They will catch me if I dare drop back
Wont you give me all the speed I lack

The Clash

domingo, 8 de maio de 2011

Whiskey, Mystics and Men

well I'll tell you a story of whiskey and mystics and men
da da da

and about the believers and how the whole thing began
da da da

first there were women and children obeying the moon
da da da

then daylight brought wisdom and fever and sickness too soon
da da da

you can try to remind me instead of the other you can
da da da

you can help to insure that we all insecure are command
da da da

If you don't give a listen I won't try to tell your new hand
da da da

this is it can't you see that we all have our in's in the band
da da da
da da da
da da da

and if all of the teachers and preachers of wealth were a-reigned
we could see quite a future for me in the literal sands
and if all of the people could claim to expect such regrets
da da da

well we'd have no forgiveness, forgetfullness, painful remorse.
da da da

so I tell you I tell you I tell you we must sail away
da da da

we must try to find a new answer instead of a way.

The Doors

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Épica e didática no cinema de Glauber


Ruy Gardnier


Um discurso muito difundido afirma que os filmes de Glauber Rocha já foram vistos, revistos, analisados, repisados à exaustão. Mas esse discurso só faz algum sentido se Glauber tivesse parado de filmar nos anos 1960 e depois disso não tivesse feito absolutamente nada. Para uma boa parte da tradição, seu cinema é reduzido apenas às suas três obras mais conhecidas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, lançados no período entre 1964 e 1969. E uma ironia histórica faz com que, de toda sua relativamente extensa produção dos anos 1970, seu único filme bem conhecido seja um curta-metragem (formato historicamente pouco prestigiado) que teve sua exibição pública proibida, Di Cavalcanti (1976).

Seu único longa-metragem dos anos 1970 efetivamente lançado no Brasil foi Cabezas Cortadas, um filme de 1970 que só entrou em cartaz no país nove anos depois de sua première internacional no Festival de San Sebastián. O resto permanece rigorosamente inédito no circuito brasileiro, apenas exibido em retrospectivas a partir dos anos 1980: O Leão de Sete Cabeças, Câncer (filmado em 1968, mas apenas finalizado em 1972), História do Brasil (feito em colaboração com Marcos Medeiros) e Claro. Naturalmente, esse desconhecimento patente de uma parte significativa da obra só fez obscurecer a trajetória de Glauber Rocha como artista e como intelectual, facilitando os mal-entendidos, as acusações simplórias e a recusa sistemática das ideias políticas e estéticas que ele exprimia em estratégicas intervenções na mídia (entrevistas escandalosas e as feéricas participações no programa Abertura), em colunas de jornal e em seus filmes.

O lançamento de O Leão de Sete Cabeças é o primeiro gesto significativo para um primeiro olhar coletivo diante desse verdadeiro enigma que é “Glauber anos 70”. Nesse percurso, não está em jogo só a passagem da “estética da fome” para a “estética do sonho”, mas também a aposta numa relação mais ativa e direta entre cinema e sociedade, em que a arte ruminaria o consciente e o inconsciente dos povos, misturando desejo e política, liberação nas escalas micro (os costumes) e macro (o imperialismo, o poder), apostando cada vez menos em narrativas bem definidas e cada vez mais no poder evocativo dos símbolos e arquétipos trabalhados nas obras.

Essa progressão já era paulatinamente trabalhada nos filmes dos anos 1960: Terra em Transe era um turbilhão barroco e desagradou a todos que esperavam um segundo Deus e o Diabo… (o tradicionalista Antonio Moniz Vianna, entusiasta de Deus e o Diabo…, chamou Terra em Transe de “obra-prima da indisciplina narrativa”, lamentando a “confusão” de sua intriga), ao passo que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro tratava o imaginário do cangaço como uma ritualística de cores, danças e arquétipos da cultura popular (em especial a figura de São Jorge e seu oponente, o dragão).

O Leão de Sete Cabeças, assim como Cabezas Cortadas, surge em 1969. Nesse ano, Glauber é possivelmente a figura mais festejada do cinema de autor, e seus filmes são vistos como a mais impactante força de resistência artística do Terceiro Mundo (a Guerra do Vietnã transformando o imperialismo na grande discussão política da época). Os acertos com os produtores para realizar esses dois filmes aconteceram no Festival de Cannes de 1969, em que seu Antonio das Mortes (nome internacional de O Dragão da Maldade…) fazia sensação, ganhava contratos de distribuição para dezenas de países e ainda viria a abocanhar a Palma de Ouro de Melhor Direção. É tanta a vontade de produzir um filme de Glauber naquele momento que os produtores fecham acordos sem mesmo requisitar um roteiro. É a crista da onda. Mas o sucesso também produz um desconforto. Nesse momento, a autocrítica do cineasta começa a apitar, e surge a sensação de que o sucesso ocorre mais pelo aspecto exótico e sensual da obra, tornando-a excessivamente palatável e desvirtuando aquilo que o artista julga mais importante nela.

Radicalização estética
Ainda no fim de 1969, Glauber filma O Leão de Sete Cabeças, na República do Congo (ou Congo-Brazzaville, para não confundir com a República Democrática do Congo, ou Congo-Kinshasa) e, no começo de 1970, roda Cabezas Cortadas em duas cidades próximas a Barcelona. Os dois filmes carregam profundamente a marca do sucesso de Cannes: vê-se claramente um cineasta seguro de si, com total desprendimento para improvisar à vontade e aproveitar o caráter fragmentário da narrativa para explorar o poder icônico de seus personagens (ligado estreitamente ao papel de poder que cada um deles representa).

Mas não é só isso. Há também uma nítida preocupação em recusar aquilo que pode ser visto como floreio, produzindo uma estética frontal, despida de ornamentos, que potencializa ao contrário a aridez e eventualmente o choque. Glauber, aliás, não é o único que passa por esse processo: Godard abandona o cinema ficcional com Weekend à Francesa, em 1967, e monta o Grupo Dziga Vertov, enquanto Pasolini cria parábolas arquetípicas e áridas com Teorema e, sobretudo, Pocilga.

Nos três casos, há uma clara recusa em afagar a sensibilidade do espectador, visando efetivamente friccioná-la, provocá-la ou mesmo confrontá-la. É um movimento conjunto do cinema autoral do fim dos anos 1960, em que alguns cineastas radicalizam progressivamente suas estéticas e reduzem os elos que unem seus filmes aos imperativos da narrativa clássica (verossimilhança, clareza, duração submetida à ação).

Glauber, porém, articula essa radicalização de uma maneira absolutamente pessoal e que diz respeito à compreensão que ele faz do espetáculo “épico-didático” que herda de Bertolt Brecht. A intenção, como em Brecht, é dramatizar situações sociais e políticas, recusando o naturalismo psicológico e utilizando a forma cinematográfica para criar perturbações na fruição do público (ao contrário do realismo socialista, apoiado no ilusionismo da representação e ancorado na ideia de reproduzir a realidade, transmitindo mensagens progressistas).

A partir de O Leão de Sete Cabeças e de Cabezas Cortadas, no entanto, o épico-didático de Glauber largará o mundo “consciente” e passará a encenar um teatro do inconsciente, como se as condições de exploração e de dominação não fossem apenas dados factuais, mas acima de tudo arquétipos encravados no fundo do subconsciente dos povos do Terceiro Mundo e dos espoliados em geral. Se a transformação é só uma questão de tomada de consciência, o realismo resolve. Se, no entanto, há camadas mais profundas, o realismo é inócuo e só uma iconografia delirante pode dar conta dessa outra “realidade”. À medida que as narrativas bem construídas dos filmes dos anos 1960 vão dando lugar aos quase-esboços dos anos 1970, torna-se progressivamente claro que a estética de Glauber é baseada não na explicação do mundo, mas na purgação – revolucionária, dialética – de uma condição política e existencial. Um incêndio simbólico para fazer a libertação brotar das cinzas do ícone deposto.

O Leão de Sete Cabeças abre uma fase no cinema de Glauber Rocha em que a forma cinematográfica é trabalhada mais radicalmente no sentido de descondicionar o espectador dos nexos narrativos e da mediação da “voz do autor”, utilizando a frontalidade das situações – frequentemente gratuitas e exageradas, fascinantes pelo excesso visual (aí o épico) – para liberar nossos olhares (aí o didático) e nos impelir a indagar a questão revolucionária, o problema fundamental: como olhar para isso?

Ruy Gardnier é crítico de cinema brasileiro e colaborador da revista eletrônica Contracampo


Revista Cult

as portas

para passar de um lugar a outro existem
as portas. em geral são de madeira, mas
às vezes não. de ferro em gerão são os
portões, mas às vezes de madeira.
portões de madeira chamam-se portei-
ras. para sair de um lugar entrando em
outro, como nos partos, as portas exis-
tem. as moscas pousam nelas. os meios
de transporte chegam e vão embora.
as portas são meios de transporte que
ficam no mesmo lugar. em geral brancas,
como as paredes são geralmente. mo-
vem-se mas ficam no mesmo lugar, como
o mar. as moscas pousam nelas, depois
voam. voam, depois pousam nelas. as
paredes ficam paradas. aranhas fazem
teias nelas. não nas portas, que têm dois
lados; nas paredes, que têm só um lado,
ou outro. os olhos pousam nelas.

Arnaldo Antunes
as coisas

MÁXIMAS E FLECHAS

3.

Para viver só, é preciso ser um bicho ou um homem - diz Aristóteles. Falta o terceiro caso: é preciso ser as duas coisas - filósofo.

10.

Não cometamos covardia com relação aos nossos atos! Não os abandonemos depois de fazê-los! - É indecente o remorso.

43.

Que importa que eu venha a ter razão? Eu tenho razão demais. E quem ri melhor também ri por último.


Friedrich Nietzsche
Crepúsculo dos Ídolos

- não, new york não é uma cidade moderna

- não, new york não é
uma cidade moderna


- disse ele, medindo incansavelmente com os passos seu quarto nas proximidades da
Washington Square.
- New York não está organizada. Apenas
carros, o metrô, os arranha-céus e elementos como tais ainda não constituem uma verdadeira cultura industrial. São
apenas a sua faceta exterior.
A América trilhou o caminho grandioso do
desenvolvimento técnico-industrial, que
modificou a face do mundo. Mas as pessoas
da América ainda não atingiram o nível
desse mundo novo. Elas ainda vivem no
passado.
Do ponto de vista intelectual, os nova-
iorquinos ainda são provincianos. Sua razão
ainda não assimilou todo o significado do
século industrial.
Aí está porque eu disse que New York não
está organizada: é um acúmulo gigantesco
de objetos feitos por crianças e não o
resultado valioso do trabalho de homens
maduros, que compreendessem os seus
próprios desejos e trabalhassem segundo
um plano como artistas. Quando na Rússia
sobrevier o século industrial, ele será
diferente. Nosso trabalho vai distinguir-se
por seu planejamento, pelo sentido pré-
determinado.
Aqui existem metrô, telefone, rádio e muitas
outras maravilhas; mas eu vou ao cinema e
vejo um público numeroso deliciar-se com
um filme estúpido, sobre não sei que história
de amor, vazia e sentimental, que seria
vaiada e expulsa da tela na mais minúscula
aldeola da nova Rússia. Que fornecem,
então, as maravilhas mecânicas às pessoas
com semelhante modo de pensar? Ao
que parece , a severidade, a ciência e a
verdade do século das máquinas não lhes
penetraram a consciência.
E o que se pode ver entre os homens de
arte? Eles possuem a eletricidade, possuem
milhares de temas atuais. Temas em pedra
e aço, que lhes entram pelos olhos na
rua, mas em seus estúdios e
escritórios, eles usam velas como o camponês russo.
Consideram isso estético. Escrevem lindos
versinhos íntimos Desenham quadrinhos
íntimos. Sua inspiração bruxoleia com a
chamazinha trêmula da vela, enquanto ela
deveria tumultuar, como uma torrente de
fogo, que se precipitasse de um alto-forno
moderno.
Ou então veja este mesmos arranha-céus.
São realizações gloriosas da engenharia
moderna. O passado não conheceu
nada semelhante. Os operosos artesãos do
Renascimento jamais sonharam com
construções tão altas, que se balançam ao
vento e desafiam a leia da gravidade. Eles
se lançam para o céu com seus cinquenta
andares, e devem ser puros, vertiginosos,
perfeitos, modernos como um dínamo. Mas
o construtor americano, que apenas pela
metade tem consciência da maravilha por
ele criada espalha pelos arranha-céus os
decrépitos ornamentos góticos e bizantinos,
de todo insignificantes aqui. É mais ou
menos como amarrar fitinhas cor-de-rosa
numa escavadeira ou colocar cachorrinhos
de celulóide sobre uma locomotiva.

talvez seja lindo, mas não é arte.
não é a arte do século industrial


New York é um equívoco e não um produto
de arte industrial.
Ela foi criada de modo anárquico, e não
como resultado da ação unida dos novos
pensadores, engenheiros, artistas
e operários.
- Nada de supérfluo. Isto é essencial na arte
industrial, na arte futurista. Nenhuma pose,
nenhuma tagarelice, nada de adocicado,
nada de saudades do que passou, nenhum
misticismo.
Na Rússia, demos um fim aos limões
espremidos e aos ossinhos de galinha roídos
do mundinho minúsculo da intelectualidade
liberal e mística.
“Para a rua, futuristas, tamborileiros e
poetas” – escrevi nos primeiros dias da
revolução. A arte apodrece quando ela é
respeitável e refinada. Ela deve sair dos
quartos forrados de veludo e dos ultra-
decorados estúdios e agarrar-se à vida.
A arte deve ter uma destinação determinada.
E eis a lei da nova arte: nada do supérfluo,
nada sem uma destinação. Eu arranquei da
poesia as vestes da retórica; eu voltei ao
essencial. Estudo cada palavra e o efeito
que desejo produzir com ela sobre o leitor:
é o que fazem as pessoas que escrevem os
anúncios de vocês. Eles não querem gastar
em vão uma só palavra – tudo tem que ter
sua destinação.
Cada produto do século industrial deve
ter sua destinação. O futurismo é contra
o misticismo, contra a divinização passiva
da natureza, contra a forma aristocrática
da preguiça ou qualquer outra, contra o
devanear e a choradeira – ele é pela técnica,
pela organização científica, pela máquina,
pelo pensamento aplicado a tudo, pela força
de vontade, a coragem, a velocidade, a
exatidão, e pelo homem novo, armado de
tudo isto.
Onde estão na América os homens de
arte com semelhante previsão do homem
novo? E onde está a previsão social do
industrialismo americano?
New York não tem um plano. Ela não
expressa nenhuma idéia, seu industrialismo
é obra do acasom enquanto o nosso
industrialismo, na Rússia, será a obra de arte
das massas.
Interrompi a torrente de sua energia futurista
e fiz uma pergunta que não lhe agradou:
- Esses intelectuais místicos e liberais a que
se referiu, na América, fogem da máquina,
eles acreditam que a maquina aniquila a
alma humana. E vocês russos, não temem
cair sob o domínio da máquina?
- Não – respondeu convicto o poeta.
– Somos os donos da maquina e não a
tememos. Sim, está morrendo a velha vida
mística e emocional, mas seu lugar será
ocupado pela vida nova. Que adianta temer
a marcha da história?
Ou temer que os homens se transformem
em máquinas? É impossível.
- Mas a máquina não vai destruir os valores
mais elevados e sutis da existência?
- Não. Tudo o que pode ser tão facilmente
destruído, merece isto. No futuro, hão de
surgir valores mais significativos e sutis. Um
aviador moscovita, meu amigo me disse:
quando ele se precipita nos ares com a
velocidade de cem milhas por hora, seu
cérebro trabalha cinco vezes mais depressa
que de costume. O século da máquina vai
estimular o pensamento ousado e livre.
- Os jovens escritores russos estão
imbuídos das mesmas idéias que vocês, e
quais são os melhores dentre eles?
- A Rússia toda está imbuída destas idéias.
Mas, para que citar os melhores escritores
jovens? Isto não é importante. O mais
importante é que milhões de homens e
mulheres que oito anos atrás não sabiam
ler, agora, tendo jogado fora todas as
velhas concepções de literatura, leem os
mais ousados dentre os jovens escritores
modernos. Esta ascensão geral do nível de
cultura é mais importante do que seria o
fato de terem aparecido em nosso país dez
Tolstóis ou Dostoiévskis. A arte infalivelmente
brota em semelhante solo.

VLADIMIR MAIAKÓVSKI
Entrevista com escritor norte-americano Michael Gold, publicada no jornal World, de New York, em 1925.

contravento 4

terça-feira, 3 de maio de 2011

Bauhaus

Vamos criar uma nova guilda de artesões, sem a distinção de classes que ergue uma barreira arrogante entre o artesão e o artista!
Walter Gropius , MANISFESTO DA BAUHAUS, 1919

A Bauhaus (*casa para construir, crescer e nutrir) foi uma escola sediada em Weimar, Alemanha, em abril de 1919, sob a direção do arquiteto Walter Gropius (1883-1969). Foi formada pela corporação entre a existente Academia de Belas-Artes de Weimar e a Escola de Artes e Ofícios, visando capacitar os alunos na teoria e na prática das artes, dando-lhes condições de criar produtos que fossem ao mesmo tempo artísticos e comerciais. Groupius imaginava uma comunidade em que professores e alunos morariam e trabalhariam juntos. Esse conceito se reflete no nome do grupo, que alude às choupanas dos pedreiros medievais (Bauhütten). Por um lado a intenção da Bauhaus era formar artistas, designers e arquitetos mais responsáveis socialmente. Por outro, ela pretendia nada menos do que o progresso da vida cultural da nação e o aperfeiçoamento da sociedade. Com tais propostas utópicas, a Bauhaus pode ser mais entendida no contexto dos debates travados na Alemanha (e em outros países) desde o fim do século XIX. No manifesto que acompanhava o programa da nova escola, Gropius escreveu:

Vamos desejar, conceber e criar juntos o novo edifício do futuro, que combinará tudo – arquitetura e pintura – em uma única forma , a qual, um dia, se erguerá em direção aos céus, das mãos de um milhão de trabalhadores, como um símbolo cristalino de uma nova e vindoura fé.

A crença de Gropius no poder transformador da arte e da arquitetura o liga a grupos contemporâneos que compartilhavam aquelas crenças, o *Arbeitsrat für Kunst, do qual ele era presidente, o Deutscher Werkbund, o *Grupo de Novembro e a Corrente de Vidro, de Bruno Taut. Groupius era membro de todos esses grupos e também estava muito próximo dos pintos expressionistas. Não foi coincidência o fato de, para a capa do manifesto da Bauhaus, ele escolher uma xilogravura de Lyonel Feininger (1871-1956), pintor associado a *O Cavaleiro Azul. Em seu texto “Conceito e desenvolvimento da escola estatal Bauhaus”, publicado em 1924, ele reconheceu as influências que atuaram sobre seu pensamento: John Ruskin e William Morris, do movimento *arts and crafts, Henry van der Velde (*Art nouveau) e Peter Behrens (Jugendstil), descrevendo-os como pessoas que “procuraram conscientemente e encontraram os primeiros caminhos que levaram à reunificação do mundo do trabalho com os artistas criativos”. Gropius reuniu um grupo extraordinário de artistas-professores para a nova escola. “Não podemos começar com mediocridade”, explicou. “É nosso dever recrutar personalidades famosas e poderosas, sempre que possível, mesmo que ainda não as compreendamos inteiramente”. Entre 1919 e 1922 Gropius contratou Feininger, os pintores suíços Johannes Itten (1888-1967) e Paul Klee, os alemães Gerhard Marcks (1889-1981), Georg Muche (1895-1987), Oskar Schlemmer (1888-1943) e Lothar Schreyer (1886-1966), além do pintor russo Vassili Kandinski.


Joost Schimidt, cartaz para a exposição da Bauhaus, julho-setembro 1923

Após modificações relativas à direção e à política, o cartaz, criado por Schimidt quando era estudante da Bauhaus, distanciava-se imediatamente da xilogravura expressionista do primeiro manifesto. A exposição foi um sucesso e atraiu 15 mil visitantes.

Itten desenvolveu o aclamado curso preliminar, obrigatório para todos os alunos. Era seu objetivo livrar os alunos dos conceitos clássicos e preconcebidos de formação no campo das artes e de liberar seu potencial criativo. O curso incluía estudos sobre materiais, utensílios e teoria da cor, análise da estrutura pictórica dos antigos mestres, meditação e exercícios de respiração. Os cursos teóricos mais importantes eram os referentes à cor e à forma, dados por Kandinski e Klee. A insistência de Itten na experiência pratica, que se ligava à teoria educacional progressista do filósofo americano John Dewey (“aprender fazendo”) tornou-se um modelo seguido por escolas de arte e design no mundo inteiro.

Após completar com sucesso o curso preliminar, os estudantes passavam a freqüentar oficinas, onde recebiam ensinamentos de um artista e de um artesão experiente. Em 1922, apesar dos recursos limitados, existiam oficinas de construção de escritório (Gropius); escultura em madeira e pedra (Schlemmer); pintura mural (Kandinski); pintura sobre vidro e encadernação (Klee); artefatos de metal (Itten); cerâmica (Marcks); tecelagem (Muche); impressão (Feininger) e teatro (Schreyer). Àquela altura ainda fazia falta à Bahaus um departamento de arquitetura, embora Gropius lecionasse sobre “Espaço” e seu sócio no escritório de arquitetura, Adolf Meyer (1881-1929), ensinasse desenho técnico em meio período até 1922.

Apesar desses esforços, pouco se avançou em direção a um relacionamento mais intimo de trabalho com a indústria. Apenas as oficinas de cerâmica e de tecelagem foram bem-sucedidas no sentido de receber encomendas de fora. Esse malogro chamou a atenção. Em 1922, a Bauhaus foi objeto de pesadas críticas por parte do periódico holandês De Stijl, que pediu uma mudança na direção. A raiz do problema estava no fato de que alguns dos primeiros professores (sobretudo Itten) apregoavam o conceito de arte como atividade espiritual, divorciada do mundo exterior. A arte havia fundido com o artesanato, mas não com a indústria. Para que a Bauhaus florescesse, o artista teria de se transformar, passando de visionário místico e expressionista a engenheiro técnico *construtivista. Artistas de *De Stijl, como El Lissitski (que visitou a escola em 1921) e Theo van Doesburg (que lecionou cursos extracurriculares sobre os princípios do De Stijl em Weimar, entre 1921 2 1923) puseram todo o peso de sua influência em favor dessa transformação. Após breve disputa, Itten demitiu-se em 1923 e foi substituído pelo húngaro László Moholy-Nagy (1895-1946), artista de orientação tecnológica, cuja obra e conceitos refletiam suas conexões com o *ativismo húngaro, De Stijl e o construtivismo. Moholy-Nagy e um ex-aluno da Bauhaus, Josef Albers (1888-1976), modificaram a ênfase dada ao Curso Preliminar, incentivando os alunos a assumir uma abordagem mais prática de seu trabalho, testando novas técnicas e novas mídias. Moholy-Nagy também modificou o perfil da oficina de artefatos de metal, que produzia objetos artesanais, peças únicas, feitas a mão (um aluno referia-se a elas como “samovares espirituais e maçanetas intelectuais”), introduzindo designs práticos de protótipos para a indústria. Modificações semelhantes se deram na oficina de teatro, onde Schlemmer substituiu Schreyer em 1923.

Essa nova orientação foi divulgada por uma importante exposição da Bauhaus organizada em 1923 por Gropius, cujo discurso de inauguração intitulava-se “Arte e tecnologia – Uma nova unidade”. Um dos destaques da exposição foi a Casa Experimental, projetada por Muche e Meyer, um protótipo de habitação funcional, barata, produzida em série, em cuja construção se empregariam os mais recentes materiais (aço e concreto) e que seria equipada com tapetes, radiadores, azulejos, luminárias, cozinha e mobiliário projetados e executados pelas oficinas da Bauhaus.
Ocorreu, porém, que tão logo a escola fundada pelo Estado começou a prosperar, o clima político em Weimar oscilou para a direita e a Bauhaus, que seguia políticas socialistas, foi imediatamente prejudicada. Em 1925, a maioria nacionalista do governo de Weimar suprimiu as dotações da escola. No mesmo ano ela se mudou para a cidade socialista de Dessau, onde recebeu recursos para construir edificações especialmente projetadas para a escola, os alunos, professores e funcionários.
Após a mudança para Dessau, Gropius esperava que finalmente a Bauhaus direcionaria seu enfoque para a arquitetura. Uma declaração, feita naquela época, resumia os princípios adotados mais tarde pelo *Estilo Internacional:

Queremos criar uma arquitetura clara, orgânica, cuja lógica interna será radiosa e despojada, desimpedida de fachadas e truques mentirosos; queremos uma arquitetura adaptada ao nosso mundo de máquinas, rádios e velozes carros a motor, uma arquitetura cuja função seja claramente reconhecível na relação de sua forma.

Outro acontecimento importante em Dessau foi a contratação de seis ex-alunos como professores em perído integral: Marcel Breuer (1902-1981); Herbert Bayer (1900-1985); Gunta Stölzl (1897-1983); Hinnerk Scheper (1897-1957); Joost Schmidt (1893-1948) e Albers. Como primeiro corpo docente formado pela Bauhaus, eles eram versáteis, competentes tanto na teoria como na prática e em inúmeras disciplinas e materiais. A produção de suas oficinas e do novo departamento de arquitetura, implantado em 1927 sob a direção do arquiteto suíço Hannes Meyer (1889-1954), criou um novo design da Bauhaus, caracterizado pela simplicidade, requinte da linha e da forma, abstração geométrica, cores primárias e o emprego de novos materiais e tecnologias. Exemplos disso são a fonte sem serifa, em caixa baixa, usada como estilo da Bauhaus, criada por Bayer, o mobiliário de aço tubular, criado por Breuer, e o projeto de casas populares empreendido pelo departamento de arquitetura em Dessau-Törten (1927-8).

Após dedicar nove anos de sua vida à administração e defesa da escola, Gropius estava ansioso para voltar a suas atividades particulares. Demitiu-se em 1928 e designou Meyer como seu sucessor. No entanto, o programa de Meyer, descomprometido com a esquerda, não entusiasmava seus colegas. Moholy-Nagy, Breuer e Bayer se demitiram, queixando-se de que o espírito comunitário havia sido substituído pela competição individual. A partir daí, a escola transformou-se numa instituição vocacional, voltada para a formação de arquitetos e desenhistas industriais. Foram criados novos cursos, incluindo o planejamento urbano, ensinado por Ludwig Hilbersheimer (1885-1967)e fotografia, sob a responsabilidade de Walter Peterhans (1897-1960). Conferencistas convidados realizaram palestras sobre sociologia, teoria política marxista, física, engenharia, psicologia e economia. Sob a direção de Meyer a escola tornou-se um sucesso comercial pela primeira vez na história. A Körtinge Mathiesen começou a fabricar luminárias criadas na oficina de artefatos de metal orientada por Marianne Brandt (1893-1983), ex-aluna da escola. O papel de parede criado na oficina de murais também começou a ser produzido industrialmente e as oficinas de tecelagem, mobiliário e cartazes de publicidade foram igualmente bem-sucedidas, passando a receber encomendas de fora.
A orientação marxista de Meyer, no entando, em breve o distanciou do governo local e ele se viu forçado a se demitir em 1930, sendo substituído pelo arquiteto Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969). Mies van der Rohe implantou uma disciplina mais rigorosa e se empenhou em distanciar a escola da política. Mas já era tarde demais. Com a vitória do Partido Nacional-Socialista nas eleições locais, em 1931, a escola foi acusada de ser excessivamente cosmopolita e não suficientemente "alemã". Em 1932 as subvenções foram canceladas. Foi feita uma última tentativa desesperada de salvá-la, mudando-a para Berlim e alojando-a numa instituição privada. Isso durou até abril de 1933, quando finalmente os nazistas a fecharam, declarando que era "um dos mais óbvios refúgios do conceito judaico-marxista de 'arte'".

Os nazistas, sem o querer, garantiram a fama da escola. Embora a Bauhaus, como instituição, chegasse ao fim em 1933, como idéia ela ganhou ímpeto. Sua ideologia e reputação já haviam alcançado um vasto público por meio de seu periódico Bauhaus (1926-1931) e da coleção sobre arte e teoria do design organizada por Gropius e Moholy-Nagy entre 1925 e 1930. A emigração forçada de muitos de seus professores e alunos disseminou seus conceitos para o mundo todo. Muitos deles emigraram para os Estados Unidos e lá foram acolhidos como heróis. Gropius e Breuer integraram o corpo docente da Universidade de Harvard; Moholy-Nagy abriu a Nova Bauhaus em Chicago, em 1937, futuro Instituto de Design de Chicago; Mies van der Rohe tornou-se diretor do Departamento de Arquitetura do Instituto Armour de Chicago (mais tarde, Instituto de Tecnologia de Illinois) e Albers lecionou no Black Mountain College, Carolina do Norte.

Amy Dempsey
Estilos, Escolas & Movimentos

COME ANANÁS

Come ananás, mastiga perdiz.
Teu dia está prester burguês.
Iech ananáci, riábtchicov jui,
Dienh tvoi posliédnii prihódit, burjui
1917

(tradução de Augusto de Campos)

Maiakóvski
Poemas

DE "V INTERNACIONAL"

Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
seu eu falo
"A"
este "a"
é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
Se eu falo
"B"
é uma nova bomba na batalha do homem.

1922

(tradução de Augusto de Campos)

Maiakóvski
Poemas

O cinema na Europa

(De São Paulo) - A morte de Eisenstein vem produzir possivelmente um vácuo na grande produção que a tela russa inaugurou há muitos anos com o Couraçado Potenkim e outras grandes composições soviéticas. Em compensação surge, num aspecto diverso, menos político e mais dramático e humano o novo cinema da Itália. Poucas vezes se teria assistido a um êxito tão pronto, ocasionado sobretudo pela qualidade inesperada dos artistas, ontem completamente desconhecidos e anônimos. O nome de Aldo Fabrizi - o padre de "Roma, cidade aberta" - está hoje colocado entre os dos melhores artistas da tela mundial.
Depois, justamente, desse documento da resistência popular italiana, aparece ele numa página do campo peninsular, entre fugitivos aliados e nazistas tremendos, com sua cara bonachona e larga, evocando gente secular que Silone fixou em páginas imortais. Uma idéia - por que ao lado de Dario Nicodemi, que se anuncia, não se filma outra jóia anti-fascista que é Fontamara?
Oswald de Andrade
Obras Completas - Telefonema

segunda-feira, 2 de maio de 2011

relicário



No baile da Corte
Foi o Conde d´Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí



Oswald de Andrade
Obras Completas - Pau Brasil

falação

O Cabralismo. A civilização dos donatários. A Querência e a Exportação.
O Carnaval. O sertão e a Favela. Pau Brasil. Bárbaro e nosso.

A formação étnica rica. A riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história da Penetração e a história comercial da América. Pau Brasil.
Contra a fatalidade do primeiro branco aportado e dominando diplomaticamente as selvas selvagens. Citando Virgílio para os tupiquinins. O bacharel.

País de dores anônimas. De doutores anônimos. Sociedade de náufragos eruditos.
Donde a nunca exportação de poesia. A poesia emaranhada na cultura. Nos cipós das metrificações.

Século vinte. Um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como babéis de borracha. Rebentaram de enciclopedismo.

A poesia para os poetas. Alegria da ignorância que descobre. Pedr´Álvares.

Uma sugestão de Blaise Cendrars: - Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.

Contra o gabinetismo, a palmilhação dos climas.
A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.

Passara-se do naturalismo à pirogravura doméstica e à kodak excursionista.
Todas as meninas prendas. Virtuoses de piano de manivela.
As procissões saíram do bojo das fábricas.
Foi preciso desmanchar. A deformação através do impressionismo e do símbolo. O lirismo em folha. A apresentação de materiais.

A coincidência de primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau Brasil.

Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e a surpresa.
Uma perspectiva de outra ordem que a visual. O correspondente ao milagre físico em arte. Estrelas fechadas nos negativos fotográficos.

E a sábia preguiça solar. A reza. A energia silenciosa. A hospitalidade.

Bárbaros, pitorescos e crédulos. Pau Brasil. A floresta e a escola. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau Brasil.


Oswald de Andrade
Obras Completas – Pau Brasil



domingo, 1 de maio de 2011

341

O maior dos pesos.
– E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes, e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente tudo na mesma sequencia e ordem – e assim também essa aranha e esse luar e essas árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se prostaria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida para não desejar nada além dessa ultima, eterna confirmação e chancela?

Friedrich Nietzsche
A Gaia Ciência

Eztetyka da Fome

Tese apresentada durante as discussões em torno do cinema novo, por ocasião da retrospectiva realizada na V Rassegna del Cinema Latino-Americano, em Gênova, janeiro de 1965, sob o patrocínio de Columbianum. O tema proposto pelo secretário Aldo Viganò foi Cinema novo e cinema mundial. Contingências forçaram a modificação: o paternalismo do europeu em relação ao Terceiro Mundo foi o principal motivo da mudança de tom.

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das discussões sobre América Latina, prefiro situar as reações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam o terreno geral do político.

Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subsesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo, e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicinamento colonialista.

A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.

O problema internacional da AL é ainda um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência.

Este condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso, a esterilidade e no segundo a histeria.

A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive falências)... O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e autodevastador esforço de superar a impotência: e no resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador: e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de sofrimento.

A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida.

De Aruanda a Vidas Secas , o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o cinema novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Este miserabilismo do cinema novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em carros de luxo: filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo de filme. O que fez do cinema novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porta das Caixas), ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco vezes Favela), ao experimental (Sol Sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o cinema novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.

A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e de ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o cinema novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais.

Pelo cinema novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?

Do cinema novo: uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francês perceber um argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de ação e transformação.

O cinema novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido, a Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um amor romântico;Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os filhos, Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isso tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre.

Já passou o tempo em que o cinema novo precisava explicar-se para existir: o cinema novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O cinema novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o cinema novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do cinema novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do xinema novo. A definição é esta e por esta definição o cinema novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do cinema industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do cinema novo depende da América Latina. Para esta liberdade, o cinema novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência.

Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.

O cinema novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas conseqüentes da sua existência.


Revolução do Cinema Novo
Glauber Rocha

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Excelsior! [Cada vez mais alto!] – “Você nunca mais rezará, nunca mais adorará, nunca mais repousará numa confiança infinita – você se proíbe estacar ante uma sabedoria última, uma bondade última, um último poder, desarmando seus pensamentos – não há um constante guardião e amigo para as suas sete solidões – você vive sem vista para uma montanha que tenha neve no rosto e ardor no coração – não existe, para você, mais nenhum retaliador, nenhum aperfeiçoador final – não há mais razão no que acontece, nem amor no que lhe acontecer – para o seu coração já não há pousada aberta, onde ele só tenha de encontrar e não mais procurar, você resiste a qualquer paz derradeira, você quer o eterno retorno da guerra e da paz: - homem de renúncia, em tudo você quer renunciar? Quem lhe dará força para isso? Ninguém jamais teve essa força!” – Existe um lago que um dia se negou a escoar, e formou um dique onde até então escoava: desde esse instante ele sobre cada vez mais. Talvez justamente essa renúncia nos empreste a força com que a renúncia mesma seja suportada; talvez o homem suba cada vez mais, já não tendo um deus no qual desaguar.

A Gaia Ciência
Friedrich Nietzsche

Internacional Situacionista

A internacional situacionista foi formada em Cosio d´Arroscia, Itália, em 1957, como uma aliança de grupos de artistas, poetas, escritores, críticos e cineastas de vanguarda dedicados à arte moderna e a política radical. Eles acreditavam que a prática artística era um ato político e que por meio da arte se poderia realizar a revolução. Em suas teorias e práticas retomavam conscientemente os ideais do *dadá, do *surrealismo e do *CoBrA.

O grupo foi formado inicialmente por membros da Internacional Letrista, baseada em Paris (um grupo dissidente do *letrismo), e incluía o cineasta e teórico Guy Debord (1931-1994), sua mulher e artista de colagem Michèle Bernstein, e Gil. J. Wolman (1929-1995); membros do Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (grupo formado após a dissolução do CoBrA), incluindo um ex-artista do CoBrA, o dinamarquês Asger Jorn (1914-1973), e o italiano Giuseppe Pinot-Gallizio (1902-1964); o artista inglês Ralph Rumney (1934), que se autodenominava representante do "Comitê Psicogeográfico de Londres". Outros artistas de destaque, como o ex-artista do CoBrA, Constant (1920), juntaram-se a eles e em breve a Internacional Situacionista incluía setente membros da Argélia, Bélgica, Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Itália e Suécia. Conferências anuais foram realizadas e publicou-se um periódico, Internationale Situacionniste (1958-1969).

A atuação do grupo obedeceu a várias estratégias básicas. Uma delas era a "situação contruída". Ao projetarem situações construídas, em vez de criarem objetos de arte tradicionais, os situacionistas acreditavam que poderiam resgatar a arte da comercialização, que ameaçava transformá-la em apenas mais uma mercadoria de status elevado. Em consequência, Pinot-Gallizio criou suas "pinturas industriais", enormes telas que chegavam a media 45 metros de comprimento, recorrendo a novos materiais e técnicas (jatos de spray, tinta industrial, resina). Essas pinturas eram vendidas por metro, zombando das convenções do mercado de arte, que confere originalidade e exclusividade às obras. (No entanto, o mercado de arte não se abalou. Quando Pinot-Gallizio aumentou arbitrariamente seus preços, a procura aumentou).

Os situacionistas também acreditavam que a intervenção artística no entorno cotidiano poderia despertar as pessoas para o ambiente que as cercava, levando assim a uma transformação da sociedade. Era intenção de Pinot-Gallizio que suas enormes pinturas fossem feitas numa escala tal que envolvessem cidades inteiras, transformando-as em lugares mais prazerosos e dinâmicos. Sua Caverna da antimatéria (1959), uma instalação multimídia, multi-sensorial, procurava envolver e fortalecer o espectador para que ele se desse conta de sua contribuição na criação e manipulação de uma atmosfera.

Outra ideia fundamental dos situacionistas era o que eles denominavam a "psicogeografia", o estudo do impacto psicológico da cidade sobre seus habitantes. Ao contrário da cidade funcional de Le Corbusier, o projeto de Constant para uma cidade ideal, Nova Babilônia (1956-1974), baseava-se na premissa de que seus moradores seriam capazes de modificá-la de acordo com seus próprios desejos. Nos anos 60 e 70 esse conceito exerceu influência sobre as práticas da arquitetura e do design, tais como o Archigram e o Arquizoom.

O détournement (subversão ou corrupção) foi outro conceito importante para os situacionistas. Ao se apropriar da arte existente e ao alterá-la, eles subverteram antigas idéias e criaram novas. As "Modificações" de Jorn, iniciadas em 1959, foram feitas quando ele pintou por cima de telas de segunda mãe encontradas em brechós. No mesmo ano, colaborou com Debord em seu livro de textos e imagens subvertidos, cujo título era Mémoires, encadernado com lixa para romper com a prática usual de guardá-lo na estante.

De 1957 a 1961 os artistas situacionistas criaram inúmeras obras de arte, situações, exposições, filmes, maquetes, plantas, panfletos e periódicos. No entanto, a cooperação entre a arte radical e a política teve curta duração. Disputas internas levaram a exclusões e desistências, e em 1962 a maior parte dos artistas profissionais havia se retirado. Os que restaram, residentes em Paris e liderados por Debord, enfocaram mais a teoria e o ativismo políticos. Suas ideias nutriram as revoltas estudantis de 1968, que culminaram na greve geral e na ocupação de Paris em maio daquele ano. Eles adotaram slogans da Internacional Situacionista como "a praia está debaixo do calçamento" e "o consumo e o ópio do povo", escritos nas paredes de toda a cidade. A fama do movimento jamais foi tão grande, mas o temor de serem consumidos pela "sociedade do espetáculo" levou Debord a dissolver discretamente o grupo de 1972. Existem paralelismos notáveis com outros artistas daquele período: *Arte beat, *Novo Realismo, *Arte performática, *Fluxus e *Neodadá.

Estilos, Escolas & Movimentos
Amy Dempsey

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A sociedade do espetáculo

"As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte,objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo"

Guy Debord
A sociedade do espetáculo